INSIGHTS


PAULO SANTOS | Primal Instinct

Musgo Verde

Hoje,
o meu corpo é o teu corpo
e o teu é o meu.
Enleados, entrelaçados, entrecortados,
entreparidos,
rasgados, sufocados, gritados,
sucumbidos,
um ante o outro,
desesperadamente enraizados um no outro,
seiva ardente em terra molhada,
fértil,
paramos, por fim.

Os teus lábios sabem a musgo verde.
Os meus sabem a ti.
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PAULO SANTOS | Touch

Esta Noite

Esta noite toco a tua pele
com a serena emoção de um anjo caído.
Outras asas, negras, aproximam-se, sinto-as sobre nós.
Mas não olhes, não temas.
A luz que nos une é forte e mantém-las, inquietas, à distância.
Abracemo-nos, pois, com firmeza.
Amo-te.
O mundo acaba esta noite.
Cá estaremos pela manhã.
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PAULO SANTOS | Lift Me Up

Natureza Divina

Ele há momentos assim,
de visceral liberdade e de impulso para o infinito,
para além de onde as palavras terminam e os deuses habitam
e onde nos convertemos em partículas de luz
eternamente a caminho.
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PAULO SANTOS | Night Scene on the Corgo Line

Cumplicidades

A noite caiu sobre a serrania. Não tive tempo para lhe escapar. Agora, percorro a linha férrea e fria, com o vazio preenchido por criaturas e mistérios e medos que se colam à pele como a fragrância da lenha que me acompanha, vinda sabe-se lá de onde. Não há sequer lua, esta noite. Ergo o queixo e olho secamente o vazio, à espera que me retribua o olhar. Tenho no corpo tudo o que tenho, tudo o mais já se perdeu. A minha casa é a distância de um passo e o caminho que me resta, toda a minha ambição. Paro. Acendo um cigarro. Há cumplicidades que só um cigarro compreende.
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PAULO SANTOS
 | Padrão dos Descobrimentos

Fernando Pessoa, dois excertos de "Mensagem"

«Quem te sagrou criou-te português.
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez. 
Senhor, falta cumprir-se Portugal!»

«Ninguém sabe que coisa quer.
 Ninguém conhece que alma tem.
Nem o que é o mal nem o que é o bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...»


In italic, two excerpts from "Mensagem" (1934) by Fernando Pessoa.
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PAULO SANTOS | Matchbox 1913 Cadillac

Dr. Smith

A noite já caiu sobre a pequena cidade e o Dr. Smith decerto nem se apercebeu. É a última visita do dia e está tudo bem. Em breve, vai acomodar-se ao volante do seu fiel Cadillac e regressar a casa, embalado pelos sobressaltos do caminho, pelo canto do motor e das cigarras. As doces fragrâncias pastorais libertadas pela chuva da tarde e enleadas na brisa suave vão fazê-lo inspirar fundo e sorrir e ansiar pelo terno beijo da esposa, tão doce. Mas não acelera, há um tempo para tudo. As memórias acompanham-no e os sonhos esperam por ele. E evita todos os mistérios. Em poucos instantes, o Dr. Smith será uma pequena luz na distância, apagando-se por fim, naturalmente, na serena cumplicidade da noite.
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PAULO SANTOS | Silence

Silêncio

A maior revolução
começa no mais pequeno silêncio.

Porque existe em ti
a memória de um tempo ausente,
a onde, rebelde, não voltarás,
 cria onde existes o mais belo sonho, 
porque é esse o teu único desígnio e consolo
 ao contemplares a luz e a sombra,
 o som e o silêncio.
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PAULO SANTOS | Carris 576

A carreira 28

A carreira 28 foi ao longo de anos uma paixão, desde o tempo em que a utilizava no caminho para a escola. Nela, conhecia os detalhes de cada eléctrico, as suas virtudes e os seus defeitos – os cheiros e os rangeres, os raspões e as amolgadelas. Conhecia os guarda-freios e os cobradores, os passageiros habituais e as suas histórias. Conhecia ao longo do percurso cada sulco indiscreto de rodas no pavimento e onde as roldanas teimavam em saltar do cabo. Por vezes, em noites quentes de Verão, saia de casa depois do jantar para ir nela, na carreira 28, assim, por entre vielas onde se ouvia ao longe vozes roucas, traçadas pela vida, a cantar o fado à porta de tascas com cheiro a vinho e a queijo, a jaquinzinhos fritos e a pastéis de bacalhau, com serradura espalhada pelo chão e talvez um último Vicente, de asa aberta e bico atrevido, a desnortear composturas.

Ia nela, na carreira 28, até à Estrela, ou mudava pelo caminho para a carreira 29 ou 30, se visse passar por mim um "caixote" ¹ no Largo do Camões. Se chegasse à Estrela, mudava para a carreira 26 e subia à Rua de Buenos Aires. Depois, vinha por ali abaixo ao lado do guarda-freio, vertiginosamente, até Santos, rumo ao Terreiro do Paço acariciado pelo Tejo e a cheirar a maresia. Noutras vezes, pela manhã, aí pelas sete e meia, quando o eléctrico arrancava da Rua da Conceição a rebentar pelas costuras com gente a caminho do emprego e das escolas, agarrava-me a onde podia e subia a Calçada de São Francisco à pendura, a desafiar a gravidade e o bom senso para não perder a primeira aula. 

Durante anos, fotografei, como se fotografam os membros de uma família, cada eléctrico que nela, na carreira 28, prestava serviço. Mas com a chegada do novo milénio, a carreira foi promovida a atracção turística e as coisas começaram a mudar, a descaracterizar-se, a perder-se. Hoje, vejo passar os eléctricos da carreira 28 cheios de gente debruçada nas janelas com o telemóvel na mão a filmar a Lisboa antiga que lhes foi habilmente vendida – graciosa, cosmopolita, gourmet e limpa de lisboetas. Onde está a minha gente nestes eléctricos? Os miúdos a caminho da escola, os pais a caminho do emprego, os avós ou as grávidas a caminho do médico? As senhoras a regressar da baixa, com os sacos de compra ajeitados ao colo. O que te aconteceu, Lisboa? Porque traíste os que sempre te amaram?

Por instantes, procuro alguma cumplicidade, uma empatia com esta gente estranha que se aformiga nas ruas, procuro esboçar um sorriso, qualquer coisa, mas não consigo. Hoje, vejo passar os eléctricos da carreira 28 cheios de gente e tão vazios. Não os reconheço e já não vale a pena. A paixão apagou-se para sempre. 

¹  Eléctricos da série 736–745, cognominados de "caixotes" pela carroçaria de aspecto angular. Circularam entre 1947/48 e 1985.




PAULO SANTOS | Winter Scene

Tanto Faz

Faças o que fizeres, fá-lo sempre bem,
como um deus que por aqui passa,
íntimo de todas as luzes e sombras, de todos os sons e silêncios. 

A memória das coisas é um atributo dos deuses.
Chamam-lhe, por vezes, de imortalidade. 

Tanto faz.
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PAULO SANTOS | Streetcar in Lisboa

Valdemar

May 6, 2022 Hoje levei um soco no estômago. Hoje, soube-o há minutos, partiu um amigo – o meu amigo Valdemar Tomás. Tive o privilégio de estar com ele há poucos dias e falámos sobre tudo, como sempre. Tive, sabe-se lá porquê, a vontade de lhe agradecer por toda a inspiração que desde os anos oitenta trouxe à minha vida pessoal e ao meu trabalho de pesquisa no tema que sempre nos uniu – o Caminho de Ferro. Tive o gosto de lhe agradecer a imaculada verticalidade expressa em diversas situações ao longo de tantos anos. Tive o gosto de sublinhar o quanto em muitos dos meus textos podíamos encontrar a sua marca vibrante a fortalecer as palavras. Pedi-lhe um pequeno texto para publicar, algumas das suas memórias sobre os eléctricos de Lisboa, sorriu. Que bem que sabem agora todas essas palavras. Há poucos meses, na passagem do ano, falámos sobre tudo, como sempre, e a dada altura comparou as nossas memórias às folhas das árvores, de como se desprendem dos ramos a cada Outono e se perdem. De como seria bom – disse-me – se de alguma forma as pudéssemos devolver aos ramos para que as mais belas experiências nunca se perdessem. Na árvore da minha vida, o amigo Valdemar é uma folha que nunca se desprenderá do seu ramo. Permanecerá sempre, como agora, verde, plena de vida. Algumas das suas memórias fazem parte das minhas memórias, das memórias de todos nós, de todos quantos soube tocar com a sua simplicidade – com a sua generosa humanidade. E enquanto por aqui estivermos nunca se vão perder. 

Por agora, tenho o rosto salgado e preciso de ficar comigo próprio, de ficar em silêncio, de não ouvir nada, de não ter palavras para ninguém (falamos depois), de assimilar a mudança, não a perda. E porque é assim a natureza das coisas, não há como evitá-lo, até um destes dias, amigo Valdemar. Até um destes dias.

Valdemar Tomás 1933–2022 | Sócio nº 1 do Clube de Entusiastas do Caminho-de-ferro.
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PAULO SANTOS | AEC Regent Mark III

Memórias

Ainda estão aqui, as tuas memórias, dos dias em que te levava para a escola. Estas janelas ainda reflectem sonhos e coisas inocentes, cartões postais nascidos de gloriosas manhãs de verão. Talvez o cheiro de diesel e borracha quente fosse inebriante, talvez o barulho do motor e as janelas a bater não permitissem falar muito, talvez a suspensão dura revelasse cada imperfeição das ruas empedradas, talvez as coisas não fossem perfeitas, nunca o são, na verdade, mas estes assentos eram sempre aconchegantes e quentes mesmo nos dias mais tristes. As tuas memórias ainda estão aqui, e permanecerão aqui, muito depois de partires.

They're still here, your memories, of the days when I took you to school. These windows still reflect innocent dreams and things, postcards born out of glorious summer mornings. Maybe the smell of diesel and hot rubber was intoxicating, maybe the engine's sound and rattling windows didn't allow you to talk much, maybe the hard suspension revealed every single imperfection of the cobbled streets, maybe things weren't perfect, they never are, really, but these seats still felt cozy and warm even on the saddest days. They're still here, your memories, and they'll remain here, long after you've gone.
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PAULO SANTOS | AEC Regent Mark III

O AEC Regent

É o AEC Regent que me leva de manhã para a escola. A singular música do seu motor, jamais escuto outra igual, reverbera nas janelas pombalinas e ainda distante anuncia a chegada. Fecho a porta, sandes na mão, acelero o passo, alcanço a paragem. Pouco depois, a densa mistura de vapores de gasóleo e borracha quente passa por mim, imobiliza-se num aperto sofrido de travões, num estranhamente compassado ralenti. Vem cheio. Espero na fila para entrar, retiro a mochila das costas. Saem dez passageiros, entram dez, num tempo em que a lotação é religiosamente cumprida. O cobrador dá o sinal de partida, dois toques de campainha, o autocarro respira fundo e arranca, ouvem-se rasgares de bilhete, cliques do obliterador, tilintares de moedas, bons-dias e obrigados. Mostra-se um passe aqui, outro ali. As senhoras fecham com a ponta dos dedos, a preceito, a mala que ajeitam ao colo. Alguns cavalheiros abrem o jornal, mas fecham-no pouco depois. Nas ruas sinuosas de Lisboa, o motorista, de camisa azul e mangas arregaçadas, impõe à mecânica inglesa um ritmo intenso, liberta-se do trânsito para chegar a horas. Os pneus saltam no empedrado, a carroçaria inclina-se, os bancos estremecem, as janelas parecem saltar. Vinte minutos. Levanto-me, toco a campainha, percorro o corredor, desço os degraus, saio. Pouco depois, o AEC Regent verde e branco respira fundo e arranca de novo, acelera num crescendo fortíssimo, passa por mim, as golfadas cinzentas do escape sucumbem na luz intensa da manhã, voltamos a ver-nos mais logo.
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PAULO SANTOS | Estação de Évora

Saudade

Num radiante dia de Inverno, esmaltada sobre um fundo azul, ei-la, a estação de Évora e o seu casario. Há alguns anos, podia continuar para Reguengos ou para Vila Viçosa ou mais além, até ouvir outra língua, se o quisesse. Hoje, paro forçosamente aqui e subo à cidade. No regresso a Lisboa, tomo um café no bar da estação, ouço o tilintar das chávenas, o vapor da máquina, o folhear de jornais, as tácticas de futebol para o domingo à noite e o eco dos meus passos na plataforma de pedra, o chilrear dos pardais. Subo para o comboio curto, solitário, quase vazio. Olho pela janela o que ainda há para olhar antes do nada que há-de chegar, porque chega sempre, como uma faca afiada que nos corta e sangra. Vertigem. Não há nada de novo aqui – apenas uma saudade que há-de nascer.
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PAULO SANTOS | Navio Évora

Suspiro

Os meus favoritos são o Évora, o Nacional e o Porto Brandão. Há neles, particularmente nos dois primeiros, um sentido de elegância e de espaço, no Évora também uma certa solenidade de tempos idos que jamais volto a encontrar. E cada travessia é uma emoção. O Nacional é como um daqueles móveis enormes que encontramos nas casas dos avós, imponente, cheio de gavetas e de mistérios. O Porto Brandão, ouço várias vezes dizer no cais, nunca se atrasa, por maior que seja a tormenta. Nele, durante a travessia, escapo-me para junto da porta, sempre aberta, da casa das máquinas, e ali fico a ouvir a sinfonia das válvulas, um staccato inebriante. Por fim, volto para junto dos meus pais a tresandar a vapores do diesel, o meu pai sorri por breves instantes, o meu sorriso, esse, persiste um pouco mais.

O Nacional e o Porto Brandão já não existem. Resta apenas o Évora. Infelizmente, muitos dos seus elegantes detalhes já se perderam. Talvez até o seu cheiro a madeiras e maresia. Mas com alguma imaginação, ao vê-lo deslizar pelo Tejo, Lisboa ao fundo e o céu pintado a aguarela, há memórias que se reavivam. E um suspiro que se deixa escapar, assim, levado pelo vento que graciosamente agita as águas.
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PAULO SANTOS | Rebocadores no Porto de Lisboa

Redenção

Em todo este olhar
descubro ainda a memória de ti,
em tudo esquecida e em tudo reencontrada.

Não é de dor, esta lágrima,
mas de redenção.
É ela que cai sobre o meu peito e agita as águas
que me levam para longe,
para tão perto de ti.
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PAULO SANTOS | Hope 2

Is there hope? – I asked.
The young sparrow showed interest, turned his head and replied
in a sort of Laurie Anderson electronic voice.

You're walking. And you don't always realize it, 
but you're always falling.
With each step, you fall forward slightly.
And then catch yourself from falling.
Over and over, you're falling.
And then catching yourself from falling.

The young sparrow paused and looked into the distance.
His dark eyes glittered for a second.

There's hope, yes.
 And suddenly flew away like young sparrows usually do,
 fooling my eyes.

There's hope, then.


I resumed walking,
 rubbing my hands to keep them warm,
 man, it's cold out here.

 
In italics, an excerpt from the Walking & Falling song by Laurie Anderson, included in the 1982 album Big Science, published by Warner Bros. Records Inc., 7599-23674-2
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PAULO SANTOS | Nymph

Have we met before? – I asked.
Who knows? – she replied, smiling and walking away,
her vibrant body morphing into a delicate flower,
barely disturbing the still water.

She smiled..



PAULO SANTOS | Prayer

And there she was, in the living room,
standing by the half-open balcony door, praying 
(in her own words, because she didn't know any prayers). 
And finding its way through the dark, ancient sky, a beam of light
gently touched her face.

It is possible that a white butterfly landed on the balcony – or a ladybug.
In the distance, a click. 

Then, silence. 



PAULO SANTOS | Hope

The world is changing.
It may take some time, but better days will come. 
Until then, focus on what really matters. 
Be human. 

In the best of all senses.

PAULO SANTOS | Perfecta Tandem
 2023 POST-SCRIPTUM

Quando em 2020 publiquei esta imagem, "Hope", escrevi – "O mundo está a mudar. Pode levar algum tempo, mas dias melhores virão. Até lá, foquemo-nos no que realmente interessa. Sejamos humanos, no melhor de todos os sentidos." Três anos depois, verifico no dia-a-dia o oposto. A Grande Pandemia pariu uma sociedade ainda mais individualista, ainda mais egoísta e hipócrita, despudoradamente cheia de si mesma e (quase) vazia de humanidade. São demasiados os exemplos quotidianos desta situação. Demasiados.
 
É esta a sociedade pela qual tantas gerações se bateram e sacrificaram? De facto, quando em 2020 publiquei esta imagem, tinha esperança que do sofrimento nascesse – como nos filmes – uma sociedade melhor, mais solidária, mais verdadeira, mais humana no melhor de todos os sentidos. Romanticamente luminosa, cálida e inspiradora. Que grotesca desilusão. 

Felizmente, isentos de estados de alma e a-morais, os apóstolos do futuro permaneceram laboriosamente focados naquilo que realmente interessa – na evolução e sobrevivência de grupos predeterminados de indivíduos e entidades. Que venham pois as máquinas e a inteligência artificial e a hiper-conectividade – um novo paradigma existencial, linear e finalmente perfeito. Perfeito. 

A humanidade é uma evidente ineficiência e a suprema evolução estrutural elimina ao fim de algum tempo as ineficiências. O rio encontra sempre o seu curso, o único possível. De facto, a desumanização é inevitável. Estamos, afinal, no bom caminho. O cheiro da terra molhada num dia de Outono é uma reacção química banal – não há qualquer benefício em atribuir-lhe outras propriedades.



PAULO SANTOS
 | Ramal de Lagos 1922–activo

Apaixonei-me por esta imagem momentos antes de a roubar para mim, para a guardar junto à pele e para a partilhar com todos aqueles que viajam pela viagem, sem norte definido, talvez por isso tão à vontade a sul, com o atlântico à direita do olhar e do coração. Ele há momentos assim, de visceral liberdade e de impulso para o infinito, para além de onde os deuses habitam e onde nos convertemos em partículas de luz eternamente a caminho. Infelizmente, nesta altura, o Ramal de Lagos era já habitado por comboios terríveis, aprisionados em si mesmos, claustrofóbicos, mijados por tintas fétidas e sanguinolentas, territórios apropriados e marcados por desfiguradas noções de liberdade. Num destes comboios, entrei, mas tive de sair. Não consegui suportar a privação da minha liberdade, do meu direito a respirar, a olhar o horizonte pela janela, assim tão belo, tão acima de qualquer grotesca pequenez humana. Sai, percorri a pé alguns metros da linha até parar e fitar o horizonte e respirar tão fundo quanto pude. Apaixonei-me por esta imagem momentos antes de a roubar para mim e imprimi-a e guardo-a sempre comigo e se algum dia me quiserem de novo aprisionar na escuridão, desdobro-a e olho-a intensamente. Sei que é por ali o caminho. Basta seguir em frente.



PAULO SANTOS | Ramal de Sines 1936–activo/mercadorias

Nos últimos anos da tracção diesel, ia por vezes ao Ramal de Sines e por ali ficava à beira da linha, o céu esplendidamente azul, em indolentes entardeceres alentejanos povoados pelo canto das cigarras, a ver passar os comboios. Nele, no ramal, nesta altura, já o sotaque sueco desaparecera, mas deleitavam-me as roucas e ensurdecedoras tracções triplas com sotaque francês a subir para Santiago do Cacém com longos comboios de carvão, a voz profunda das imortais ALCO que ali aguardavam por cruzamentos, como cavalos suados, inquietos, a resfolegar antes de prosseguirem caminho. Até as mal-amadas, fumarentas e sempre farruscas "bicicletas" tinham o seu encanto. Quando por fim registei esta imagem, já o diesel tinha dado lugar à electricidade e duplas tracções com sotaques alemães ou franceses sibilavam discretamente pela paisagem. Mas o céu esplendidamente azul, a terra que docemente nos aperta contra o peito, o canto das cigarras e os indolentes entardeceres alentejanos a ver passar os comboios, permaneceram iguais.


Cortesia do amigo Augusto Manuel Valadas, a precisa localização da imagem no Ramal de Sines, «Fotografia tirada no início da rampa das Relvas Verdes, entre o antigo apeadeiro da Ortiga e a estação de Santiago do Cacém. Passei aqui várias vezes nas locomotivas 1321 e 1322, que rebocavam o comboio das Cinzas da central da EDP de S.Torpes para a Cimpor de Alhandra.»



PAULO SANTOS | Linha do Sado 1915-activa

Há nesta imagem, na fria e complexa paisagem eléctrica, uma insidiosa melancolia, talvez beleza. Ambiente ferroviário sob a catenária na estação de Setúbal na linha do Sado, em Janeiro de 2023.



PAULO SANTOS | Linha do Oeste 1888-activa

A Linha do Oeste tem uma beleza singela e peculiar ao encontrar sinuosamente o caminho por entre colinas ondulantes pontuadas por moinhos ou modernamente por sussurrantes geradores eólicos, atravessando vales harmoniosamente parcelados ou mantidos no seu estado ancestral. Tenho dela centenas de imagens assim, bucólicas, pastorais ou insólitas, mas aqui, neste dia chuvoso em Maio de 2019, quis vislumbrar o que a Linha do Oeste poderia ter sido e nunca foi – uma pulsante artéria principal irrigando toda uma região, percorrida incessantemente por modernos comboios de passageiros e de mercadorias. Nesta imagem, a via dupla sugere-nos isso, mas é apenas uma capilaridade, um pequeno troço de via dupla na aproximação ao topo sul da estação de Mafra.



PAULO SANTOS | Caminho de Ferro Mineiro do Lena 1917-1945

Esta é uma das imagens que me inquieta. Num dia severo e chuvoso, mas rasgado por uma luz estranha e feérica, subo à Mina da Bezerra, à procura de fantasmas de um tempo perdido, pelo antigo leito de via do caminho-de-ferro mineiro – e não me desaponto. Por mim vejo passar uma imponente Škoda com um longo comboio de carvão a caminho de Martingança e ao longe, mais abaixo, lá para os lados de Porto de Mós, julgo escutar a peculiar automotora "Zézinha". Ao cimo, o bulício metálico das minas, um cão a ladrar. Paro por instantes para guardar a serrania acariciada por dedos de luz – e tenho a certeza de não estar só. O que ali existiu, existe para sempre, visível a quem respeitosamente e com assombro lhe invoca a alma e a memória.



PAULO SANTOS | Linha do Corgo 1906-2009

Esta é uma das imagens que mais gosto – e que me emociona. Num belo dia de Outono em 2007, em frente e à nossa esquerda, o corpo severo e belo da serrania trasmontana, à nossa direita, no vale profundo, (pressente-se) o sempre misterioso Corgo. E acariciando tudo isto, entre Vila Real e a Régua, a linha do caminho-de-ferro. Uma cumplicidade com mais de cem anos, desfeita para sempre.



PAULO SANTOS | São Vicente



PAULO SANTOS | Rebocadores no Porto de Lisboa



PAULO SANTOS | Rebocadores no Porto de Lisboa 



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