INSIGHTS
The softer side of someone obsessed with precision, facts and numbers. ●
PAULO SANTOS | Padrão dos Descobrimentos
Valdemar Tomás 1933–2022 | Sócio nº 1 do Clube de Entusiastas do Caminho-de-ferro.
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PAULO SANTOS | Ramal de Lagos 1922–activo
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PAULO SANTOS | O Anel
Off-Topic "O Anel"
«Quando um misterioso anel é encontrado na Serra de Sintra, ninguém suspeita que se trata de muito mais do que aquilo que aparenta. Há coisas achadas que nunca se devem trazer para casa. Na imagem, eu próprio no papel do detective Fausto Setembro durante as filmagens em 2024 de o "O Anel". Uma sucessão de crimes rituais, hediondos, que só pode ser travada na origem, na delicada fronteira entre duas dimensões, no limiar da compreensão humana.» FR/EN
Na sequência de fotos, três cenas – "À procura de respostas/Looking for answers", "O caminho para o esquecimento/The path for oblivion" e "Está aqui/It's here".
Nota | Depois de debater com o meu amigo Pedro Silva as suas primeiras páginas de uma novela policial, senti a necessidade de pôr à prova as minhas capacidades neste género. De facto, "O Anel" existe apenas na forma escrita, um despretensioso exercício literário de arcos narrativos e ambientes noir, de terror e sobrenatural, ainda por completar. A sua "filmagem" é apenas um delírio da minha imaginação – ainda que as fotos ilustrem efectivamente momentos da narrativa. Para todos os efeitos, fica a sensação inquietante de ver palavras escritas assumirem forma real.
PEDRO SILVA | Two
Depois
Depois da inquietação dos nossos lábios, o silêncio. Olho nos teus olhos e pergunto – O que fazemos agora? Coras, fixas meigo, o teu olhar no meu peito. Pego na tua mão, puxo-te delicadamente para mim, sento-me e aninho-te no meu colo, encosto o teu rosto ao meu peito, repouso o meu queixo sobre o teu cabelo e enleio nele os meus dedos, abraço-te a proteger-te de tudo o que neste mundo te possa magoar. Depois, ali ficamos, cúmplice diálogo de olhares e silêncios. Por fim, o telefone, olho, nada de importante, recuso – Vamos comer qualquer coisa? Espreguiças-te timidamente, levantamo-nos, ajeitas a camisa, vou pegar na tua mão quando a tua, com firmeza, se antecipa e pega na minha. Olho nos teus olhos e pergunto – Ficas comigo esta noite? Sorris, encostas os teus lábios ao meu ouvido e segredas – Fico contigo, sempre. Vamos comer qualquer coisa?
Na rua, a noite estava fria. Dei por isso, apenas.
PEDRO ALMEIDA | Twilight Souls
Vem
Vem,
senta-te junto a mim.
Nada tenho para te dizer que te faça sentir melhor,
estás longe demais das palavras
para lhes sentires o calor.
Mas encosta-te a mim, se o quiseres, e olha apenas o horizonte
em silêncio,
num silêncio tão perto do meu
que já é meu, também.
Vem,
senta-te junto a mim.
Nada tenho para te dizer que te faça sentir melhor,
estou também eu longe demais das palavras
para lhes sentir o calor.
Mas estou aqui.
Encosta-te a mim, se o quiseres, dá-me a tua mão,
fiquemos à flor da pele, longe das palavras,
tão perto de nós,
daquilo que a vida nos tornou.
Por fim,
sob o cálido amarelo-laranja-púrpura do sol que adormece,
o azul profundo do nosso olhar.
Inquieta, a linha do horizonte dos nossos lábios.
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Text by Paulo Santos, image courtesy of Pedro Almeida..
PAULO SANTOS | Eborense
Até Sempre
Março de 2024
Gostava, companheiro de tantas travessias no Tejo com cheiro a gasóleo e a maresia, embaladas pelo marulhar das águas salpicadas no rosto e pelo crocitar das gaivotas, de te dirigir um último agradecimento. De te fotografar uma última vez, num dia de sol e de memórias. Seria interessante se te deixassem despedir com uma vénia das populações que serviste durante anos. Que te aproximasses do terminal de Cacilhas, cruzando depois o Tejo numa última carícia à vista do Cais das Colunas, do Cais do Sodré, do Padrão dos Descobrimentos e da Torre de Belém, até entrares no Atlântico e virares a bombordo, como as ancestrais caravelas, rumo à costa africana. Sei que esse dia não vai acontecer, que partirás discretamente, sem aviso, como outros antes de ti. Mas se acontecesse, podes ter a certeza de que estaria presente na margem para te acenar, para te dirigir um último agradecimento. Para te fotografar uma última vez, num dia de sol e de memórias, talvez de uma fugaz comoção. Para te dizer – obrigado e até sempre. E tenho a certeza de que não seria o único.
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Doado à Guiné-Bissau em 2023, totalmente reabilitado e dotado de uma grua, o "Eborense" rumará até àquele país africano para ligar regularmente Bissau ao arquipélago dos Bijagós (Bissau–Bubaque) e possivelmente à Gambia (Bissau–Banjul), rebaptizado de "Centenário de Amilcar Cabral".
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Post-scriptum
Setembro de 2024
O "Eborense" – sempre "Eborense", não se muda o nome a algo que nos é oferecido – deixou o rio de toda uma vida em Setembro de 2024, discretamente, sem aviso, como outros antes dele.
PAULO SANTOS | September
Setembro
Eram oito da manhã quando entrei para o café habitual – Bom dia. Do lado de lá do balcão, veio a pronta resposta e logo a seguir um – Sabe, li o seu último texto e tocou-me. É tão bom quando encontramos, assim, o verdadeiro amor. Sorri. Sabe – continuou, enquanto colocava com aprumo o pires no balcão, a colher e o pacotinho de açúcar – eu também tenho uma história bonita. Quando estava na tropa namorei uma mocinha linda, mas sabe, o juízo não era muito e ao fim de algum tempo, ele há coisas que uma mulher não tolera, separámo-nos. O tempo passou, emigrei, casei, tive dois filhos e por fim divorciei-me. Regressei a Portugal e um dia, estava a arrumar as coisas em casa, caiu-me uma agenda no chão. Aninhou delicadamente a chávena no pires e continuou – Apanhei-a, estava aberta numa página com o nome de uma cidade e um número de telefone. De repente, associei-o à casa dos pais da tal mocinha. Abri o pacotinho de açúcar, verti o seu conteúdo para o café e mexi-o três vezes num círculo deliberadamente perfeito. Era dia de Natal, ganhei coragem e liguei. Atendeu-me uma voz feminina, procurei dizer quem era e ao fim de alguns segundos, do outro lado, ouvi – Sou eu... Estremeci. Sorvi o café em três golos, saboreando-os prolongadamente no céu-da-boca, fechando os olhos por instantes. Falámos durante um quarto de hora (com a família dela sentada à mesa, à espera), disse-me que também se tinha casado e divorciado, que tinha um filho. Passados vinte anos, foi tão bom ouvir de novo a sua voz. A partir desse momento, nunca mais nos afastámos e por fim voltámos um para o outro – a minha "joaninha". Pousei a chávena, satisfeito. Foi como diz no seu texto – descobrimos que apenas precisávamos um do outro para termos força, para ultrapassarmos todas as dificuldades, para corrigirmos todos os erros do passado, para sermos felizes. O verdadeiro amor muda-nos para melhor e tem muita força – o que está escrito no céu, está escrito no céu. Fico feliz que tenha gostado do texto – rematei com alguma circunstância, enquanto colocava três moedas sobre o balcão – e tenho a certeza de que ambos mereceram esse milagre. Continuação de um bom dia e até amanhã. E o senhor, já teve o seu milagre de Natal? – perguntou-me, enquanto recolhia as moedas. Sorri – Estamos em Setembro, meu amigo, estamos em Setembro.
PEDRO SILVA | Call You Later
Assim
Hoje,
deixa-me ver a silhueta do teu corpo
revelada pela cálida lua cheia que nos entra pelo quarto.
Hoje,
não há preces, nem milagres, nem anjos que nos protejam
do murmúrio voraz
trazido pela brisa que inquieta as cortinas.
Hoje,
cruzámos todos os limites, acordámos todos os demónios,
enfurecemo-los,
despimos e vestimos todas as peles,
rasgámo-las carne adentro e sangrámos e curamos todos os golpes
com as lágrimas que ambos vertemos.
Hoje,
não há preces, nem milagres, nem anjos que nos protejam.
Nem é preciso.
Tudo o que há de divino descubro-o em ti,
na silhueta do teu corpo revelada pela cálida lua cheia que nos entra pelo quarto.
Todos os madrugares e revelações de todos os segredos ocultos
encontro-os em ti.
Perdoa-me por ter demorado tanto tempo
a dar por ti.
A noite é tão escura, por vezes.
O murmúrio voraz silenciou-se, as cortinas aquietaram-se,
todos os demónios adormeceram.
Por entre as cicatrizes no meu peito
nasceu uma flor desenhada pelas tuas lágrimas,
pelos teus beijos.
Assim.
Text by Paulo Santos, image courtesy of Pedro Silva.
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PAULO SANTOS | AEC Regal
O AEC Regal
Durante anos, utilizo o AEC Regal nas carreiras 13, 20 e 37. De todas, associo-o, já nos seus últimos dias, pintado de cor de laranja e cinzento claro, sobretudo à 37, entre o Rossio e o Castelo de São Jorge, carreira curta, mas porventura uma das mais difíceis que qualquer autocarro pode encontrar, pela inclemente subida em curva e contra-curva em ruas apertadas, de piso empedrado, ancestrais, onde a passagem, dificultada por carros mal estacionados, com margens de escassos centímetros, se consegue pela experiência e destreza do motorista. Em dias de Verão, dias de quase quarenta graus, lotado, a rebentar pelas costuras, o nobre leão inglês lança o rugido de desafio ao avançar pela Rua da Conceição, crava as garras no Largo da Madalena e inicia a subida, o capot a tremer, a tampa do radiador envolta em vapor, o coração a bater forte, até se esgueirar pela Travessa do Funil, alcançar o castelo, encostar-se à frescura da sua muralha e lamber as patas. O motorista, camisa azul de mangas arregaçadas, limpa com firmeza o suor, toma um golo de água, sai da cabina, ajeita as calças e a camisa, estica as pernas, respira fundo. Isto está cá um calor! – exclama.
PEDRO ALMEIDA | Caparica Sunset
Inesquecível
São oito da noite na Costa de Caparica e sob a derradeira carícia do sol entrelaçam-se realidades distintas. Para uns, a vontade de concluir a faina, de fazer o dia e regressar a casa, para outros, a vontade de prolongar até onde for possível o êxtase de um dia assim, de Verão, inesquecível.
Text by Paulo Santos, image courtesy of Pedro Almeida..
PAULO SANTOS | Primal Instinct
Musgo Verde
Hoje,
o meu corpo é o teu corpo
e o teu é o meu.
Enleados, entrelaçados, entrecortados,
entreparidos,
rasgados, sufocados, gritados,
sucumbidos,
um ante o outro,
desesperadamente enraizados um no outro,
seiva ardente em terra molhada,
fértil,
paramos, por fim.
Os teus lábios sabem a musgo verde.
Os meus sabem a ti.
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PAULO SANTOS | Touch
Esta Noite
Esta noite toco a tua pele
com a serena emoção de um anjo caído.
Outras asas, negras, aproximam-se, sinto-as sobre nós.
Mas não olhes, não temas.
A luz que nos une é forte e mantém-las, inquietas, à distância.
Abracemo-nos, pois, com firmeza.
Amo-te.
O mundo acaba esta noite.
Cá estaremos pela manhã.
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PAULO SANTOS | Lift Me Up
Natureza Divina
Ele há momentos assim,
de visceral liberdade e de impulso para o infinito,
para além de onde as palavras terminam e os deuses habitam
e onde nos convertemos em partículas de luz
eternamente a caminho.
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PAULO SANTOS | Night Scene on the Corgo Line
Cumplicidades
A noite caiu sobre a serrania, não tive tempo para lhe escapar. Agora, percorro a linha férrea e fria, com o vazio preenchido por criaturas e mistérios e medos que se colam à pele como a fragrância da lenha que me acompanha, vinda sabe-se lá de onde. Não há sequer lua, esta noite. Ergo o queixo e olho secamente o vazio, à espera que me retribua o olhar. Tenho no corpo tudo o que tenho, tudo o mais já se perdeu. A minha casa é a distância de um passo e o caminho que me resta, toda a minha ambição. Paro. Acendo um cigarro. Há cumplicidades que só um cigarro compreende.
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PAULO SANTOS | Padrão dos Descobrimentos
Fernando Pessoa, dois excertos de "Mensagem"
«Quem te sagrou criou-te português.
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!»
«Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem.
Nem o que é o mal nem o que é o bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...»
In italic, two excerpts from "Mensagem" (1934) by Fernando Pessoa.
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PAULO SANTOS | Matchbox 1913 Cadillac
Dr. Smith
A noite já caiu sobre a pequena cidade e o Dr. Smith decerto nem se apercebeu. É a última visita do dia e está tudo bem. Em breve, vai acomodar-se ao volante do seu fiel Cadillac e regressar a casa, embalado pelos sobressaltos do caminho, pelo canto do motor e das cigarras. As doces fragrâncias pastorais libertadas pela chuva da tarde e enleadas na brisa suave vão fazê-lo inspirar fundo e sorrir e ansiar pelo terno beijo da esposa, tão doce. Mas não acelera, há um tempo para tudo. As memórias acompanham-no e os sonhos esperam por ele. E evita todos os mistérios. Em poucos instantes, o Dr. Smith será uma pequena luz na distância, apagando-se por fim, naturalmente, na serena cumplicidade da noite.
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PAULO SANTOS | Silence
Silêncio
A maior revolução
começa no mais pequeno silêncio.
Porque existe em ti
a memória de um tempo ausente,
a onde, rebelde, não voltarás,
cria onde existes o mais belo sonho,
porque é esse o teu único desígnio e consolo
ao contemplares a luz e a sombra,
o som e o silêncio.
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PAULO SANTOS | Carris 576
A carreira 28
A carreira 28 foi ao longo de anos uma paixão, desde o tempo em que a utilizava no caminho para a escola. Nela, conhecia os detalhes de cada eléctrico, as suas virtudes e os seus defeitos – os cheiros e os rangeres, os raspões e as amolgadelas. Conhecia os guarda-freios e os cobradores, os passageiros habituais e as suas histórias. Conhecia ao longo do percurso cada sulco indiscreto de rodas no pavimento e onde as roldanas teimavam em saltar do cabo. Por vezes, em noites quentes de Verão, saia de casa depois do jantar para ir nela, na carreira 28, assim, por entre vielas onde se ouvia ao longe vozes roucas, traçadas pela vida, a cantar o fado à porta de tascas com cheiro a vinho e a queijo, a jaquinzinhos fritos e a pastéis de bacalhau, com serradura espalhada pelo chão e talvez um último Vicente, de asa aberta e bico atrevido, a desnortear composturas.
Ia nela, na carreira 28, até à Estrela, ou mudava pelo caminho para a carreira 29 ou 30, se visse passar por mim um "caixote" ¹ no Largo do Camões. Se chegasse à Estrela, mudava para a carreira 26 e subia à Rua de Buenos Aires. Depois, vinha por ali abaixo ao lado do guarda-freio, vertiginosamente, até Santos, rumo ao Terreiro do Paço acariciado pelo Tejo e a cheirar a maresia. Noutras vezes, pela manhã, aí pelas sete e meia, quando o eléctrico arrancava da Rua da Conceição a rebentar pelas costuras com gente a caminho do emprego e das escolas, agarrava-me a onde podia e subia a Calçada de São Francisco à pendura, a desafiar a gravidade e o bom senso para não perder a primeira aula.
Durante anos, fotografei, como se fotografam os membros de uma família, cada eléctrico que nela, na carreira 28, prestava serviço. Mas com a chegada do novo milénio, a carreira foi promovida a atracção turística e as coisas começaram a mudar, a descaracterizar-se, a perder-se. Hoje, vejo passar os eléctricos da carreira 28 cheios de gente debruçada nas janelas com o telemóvel na mão a filmar a Lisboa antiga que lhes foi habilmente vendida – graciosa, cosmopolita, gourmet e limpa de lisboetas. Onde está a minha gente nestes eléctricos? Os miúdos a caminho da escola, os pais a caminho do emprego, os avós ou as grávidas a caminho do médico? As senhoras a regressar da baixa, com os sacos de compra ajeitados ao colo. O que te aconteceu, Lisboa? Porque traíste os que sempre te amaram?
Por instantes, procuro alguma cumplicidade, uma empatia com esta gente estranha que se aformiga nas ruas, procuro esboçar um sorriso, qualquer coisa, mas não consigo. Hoje, vejo passar os eléctricos da carreira 28 cheios de gente e tão vazios. Não os reconheço e já não vale a pena. A paixão apagou-se para sempre.
¹ Eléctricos da série 736–745, cognominados de "caixotes" pela carroçaria de aspecto angular. Circularam entre 1947/48 e 1985.
PAULO SANTOS | Winter Scene
Tanto Faz
Faças o que fizeres, fá-lo sempre bem,
como um deus que por aqui passa,
íntimo de todas as luzes e sombras, de todos os sons e silêncios.
A memória das coisas é um atributo dos deuses.
Chamam-lhe, por vezes, de imortalidade.
Tanto faz.
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PAULO SANTOS | Streetcar in Lisboa
Valdemar
May 6, 2022 Hoje levei um soco no estômago. Hoje, soube-o há minutos, partiu um amigo – o meu amigo Valdemar Tomás. Tive o privilégio de estar com ele há poucos dias e falámos sobre tudo, como sempre. Tive, sabe-se lá porquê, a vontade de lhe agradecer por toda a inspiração que desde os anos oitenta trouxe à minha vida pessoal e ao meu trabalho de pesquisa no tema que sempre nos uniu – o Caminho de Ferro. Tive o gosto de lhe agradecer a imaculada verticalidade expressa em diversas situações ao longo de tantos anos. Tive o gosto de sublinhar o quanto em muitos dos meus textos podíamos encontrar a sua marca vibrante a fortalecer as palavras. Pedi-lhe um pequeno texto para publicar, algumas das suas memórias sobre os eléctricos de Lisboa, sorriu. Que bem que sabem agora todas essas palavras. Há poucos meses, na passagem do ano, falámos sobre tudo, como sempre, e a dada altura comparou as nossas memórias às folhas das árvores, de como se desprendem dos ramos a cada Outono e se perdem. De como seria bom – disse-me – se de alguma forma as pudéssemos devolver aos ramos para que as mais belas experiências nunca se perdessem. Na árvore da minha vida, o amigo Valdemar é uma folha que nunca se desprenderá do seu ramo. Permanecerá sempre, como agora, verde, plena de vida. Algumas das suas memórias fazem parte das minhas memórias, das memórias de todos nós, de todos quantos soube tocar com a sua simplicidade – com a sua generosa humanidade. E enquanto por aqui estivermos nunca se vão perder.
Por agora, tenho o rosto salgado e preciso de ficar comigo próprio, de ficar em silêncio, de não ouvir nada, de não ter palavras para ninguém (falamos depois), de assimilar a mudança, não a perda. E porque é assim a natureza das coisas, não há como evitá-lo, até um destes dias, amigo Valdemar. Até um destes dias.
Valdemar Tomás 1933–2022 | Sócio nº 1 do Clube de Entusiastas do Caminho-de-ferro.
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PAULO SANTOS | AEC Regent Mark III
Memórias
Ainda estão aqui, as tuas memórias, dos dias em que te levava para a escola. Estas janelas ainda reflectem sonhos e coisas inocentes, cartões postais nascidos de gloriosas manhãs de verão. Talvez o cheiro de diesel e borracha quente fosse inebriante, talvez o barulho do motor e as janelas a bater não permitissem falar muito, talvez a suspensão dura revelasse cada imperfeição das ruas empedradas, talvez as coisas não fossem perfeitas, nunca o são, na verdade, mas estes assentos eram sempre aconchegantes e quentes mesmo nos dias mais tristes. As tuas memórias ainda estão aqui, e permanecerão aqui, muito depois de partires.
They're still here, your memories, of the days when I took you to school. These windows still reflect innocent dreams and things, postcards born out of glorious summer mornings. Maybe the smell of diesel and hot rubber was intoxicating, maybe the engine's sound and rattling windows didn't allow you to talk much, maybe the hard suspension revealed every single imperfection of the cobbled streets, maybe things weren't perfect, they never are, really, but these seats still felt cozy and warm even on the saddest days. They're still here, your memories, and they'll remain here, long after you've gone.
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PAULO SANTOS | AEC Regent Mark III
O AEC Regent
É o AEC Regent que me leva de manhã para a escola. A singular música do seu motor, jamais escuto outra igual, reverbera nas janelas pombalinas e ainda distante anuncia a chegada. Fecho a porta, sandes na mão, acelero o passo, alcanço a paragem. Pouco depois, a densa mistura de vapores de gasóleo e borracha quente passa por mim, imobiliza-se num aperto sofrido de travões, num estranhamente compassado ralenti. Vem cheio. Espero na fila para entrar, retiro a mochila das costas. Saem dez passageiros, entram dez, num tempo em que a lotação é religiosamente cumprida. O cobrador dá o sinal de partida, dois toques de campainha, o autocarro respira fundo e arranca, ouvem-se rasgares de bilhete, cliques do obliterador, tilintares de moedas, bons-dias e obrigados. Mostra-se um passe aqui, outro ali. As senhoras fecham com a ponta dos dedos, a preceito, a mala que ajeitam ao colo. Alguns cavalheiros abrem o jornal, mas fecham-no pouco depois. Nas ruas sinuosas de Lisboa, o motorista, de camisa azul e mangas arregaçadas, impõe à mecânica inglesa um ritmo intenso, liberta-se do trânsito para chegar a horas. Os pneus saltam no empedrado, a carroçaria inclina-se, os bancos estremecem, as janelas parecem saltar. Vinte minutos. Levanto-me, toco a campainha, percorro o corredor, desço os degraus, saio. Pouco depois, o AEC Regent verde e branco respira fundo e arranca de novo, acelera num crescendo fortíssimo, passa por mim, as golfadas cinzentas do escape sucumbem na luz intensa da manhã, voltamos a ver-nos mais logo.
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PAULO SANTOS | Estação de Évora
Saudade
Num radiante dia de Inverno, esmaltada sobre um fundo azul, ei-la, a estação de Évora e o seu casario. Há alguns anos, podia continuar para Reguengos ou para Vila Viçosa ou mais além, até ouvir outra língua, se o quisesse. Hoje, paro forçosamente aqui e subo à cidade. No regresso a Lisboa, tomo um café no bar da estação, ouço o tilintar das chávenas, o vapor da máquina, o folhear de jornais, as tácticas de futebol para o domingo à noite e o eco dos meus passos na plataforma de pedra, o chilrear dos pardais. Subo para o comboio curto, solitário, quase vazio. Olho pela janela o que ainda há para olhar antes do nada que há-de chegar, porque chega sempre, como uma faca afiada que nos corta e sangra. Vertigem. Não há nada de novo aqui – apenas uma saudade que há-de nascer.
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PAULO SANTOS | Navio Évora
Suspiro
É algo que vem com a idade, a nítida percepção de que nada dura para sempre, de que a dolorosa perda daquilo que amamos é inevitável – se vivermos o suficiente. É algo que começa, assim, como um vento que graciosamente agita as águas e antecede a tempestade – as memórias. Da Lisboa que tanto amei, lembro-me de quase tudo, dos sons e dos cheiros que mudavam a cada estação, das incontáveis lojas e lojinhas de vão de escada, das pastelarias e cafés que habitavam cada rua, das carrocinhas que vinham à Praça da Figueira vender fruta, das carrinhas brancas a verter água que vinham ao Largo de São Domingos vender peixe fresco, das castanhas quentes embrulhadas em papel de jornal, a anunciar o Outono, dos feirantes que vinham ao Martim Moniz vender perus vivos, no Natal. Dos ardinas e dos cauteleiros, dos engraxadores a fazer estalar a camurça sobre os sapatos, dos amoladores, dos guardas-nocturnos e dos polícias-sinaleiros. Das pessoas, lembro-me, sobretudo, das pessoas. De cada rosto e de cada vida – de cada história que em miúdo pedia para me contarem. E lembro-me do Tejo, do cheiro a maresia, do peixe a chegar à Ribeira pela manhã e das varinas, das tardes passadas com os companheiros de escola no Cais da Rocha do Conde de Óbidos, a ver navios. Lembro-me do Tejo, das incontáveis travessias-aventuras, de cada um dos seus barcos.
Os meus favoritos são o "Évora", o "Nacional" e o "Porto Brandão". Há neles, particularmente nos dois primeiros, um sentido de elegância e de espaço, no "Évora" também uma certa solenidade de tempos idos que jamais volto a encontrar. E cada travessia é uma emoção. O "Nacional" é como um daqueles móveis enormes que encontramos nas casas dos avós, imponente, cheio de gavetas e de mistérios. O "Porto Brandão", ouço várias vezes dizer no cais, nunca falha, por maior que seja a tormenta. Nele, durante a travessia, escapo-me para junto da porta aberta da casa das máquinas e ali fico a ver a hipnótica dança das válvulas, a ouvir o seu staccato inebriante. Por fim, volto para junto dos meus pais a tresandar a vapores de gasóleo, o meu pai sorri por breves instantes, o meu sorriso, esse, persiste um pouco mais. O "Nacional" e o "Porto Brandão" já não existem. Resta apenas o "Évora". Infelizmente, muitos dos seus elegantes detalhes já se perderam. Talvez até o seu cheiro a madeiras e maresia. Mas com alguma imaginação, ao vê-lo deslizar pelo Tejo, Lisboa ao fundo e o céu pintado a aguarela, há memórias que se reavivam. E um suspiro que se deixa escapar, assim, levado pelo vento que graciosamente agita as águas.
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PAULO SANTOS | Rebocadores no Porto de Lisboa
Redenção
Em todo este olhar
descubro ainda a memória de ti,
em tudo esquecida e em tudo reencontrada.
Não é de dor, esta lágrima,
mas de redenção.
É ela que cai sobre o meu peito e agita as águas
que me levam para longe,
para tão perto de ti.
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PAULO SANTOS | Hope 2
Esperança
Há esperança? – Perguntei.
O jovem pardal mostrou interesse, voltou a cabeça e respondeu
com a voz electrónica da Laurie Anderson.
Estás a caminhar. E nem sempre te apercebes disso,
Mas estás sempre a cair.
A cada passo, cais ligeiramente para a frente,
E então impedes-te de cair.
Uma vez após outra, estás a cair.
E a impedir-te de caíres.
O jovem pardal fez uma pausa, mirando a distância.
Os seus olhos negros cintilaram por instantes.
Existe esperança, sim.
E subitamente voou como os jovens pardais habitualmente fazem,
enganando os meus olhos.
Então, há esperança.
Retomei o meu caminho,
esfregando as mãos para as manter quentes,
rapaz, está frio por aqui.
Em itálico, tradução pessoal de um excerto da canção "Walking & Falling" de Laurie Anderson, incluída no álbum "Big Science" de 1982, publicado pela Warner Bros. Records Inc., 7599-23674-2.
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PAULO SANTOS | Nymph
Conhecemo-nos? – perguntei.
Ninfa
Quem sabe? – respondeu, sorrindo e afastando-se,
o seu corpo cintilando até se transformar numa flor delicada
pousando serenamente sobre a água.
Ela sorriu..
PAULO SANTOS | Prayer
Oração
E ali estava ela,
junto à porta meio aberta da varanda, rezando
(nas suas próprias palavras, porque não sabia nenhuma oração).
E encontrando o seu caminho pelo céu escuro e ancestral, um raio de luz
tocou-lhe gentilmente o rosto.
É possível que uma borboleta branca tenha pousado na varanda – ou uma joaninha.
Na distância, um clique.
Depois, silêncio.
PAULO SANTOS | Hope
The world is changing.
It may take some time, but better days will come.
Until then, focus on what really matters.
Be human.
In the best of all senses.
Quase Perfeito
POST-SCRIPTUM
Quando em 2020 publiquei esta imagem, escrevi – "O mundo está a mudar. Pode levar algum tempo, mas dias melhores virão. Até lá, foquemo-nos no que realmente interessa. Sejamos humanos, no melhor de todos os sentidos." Quatro anos depois, verifico no dia-a-dia o oposto. A Grande Pandemia pariu com raiva uma sociedade ainda mais individualista, ainda mais egoísta e hipócrita, despudoradamente cheia de si própria. São demasiados os exemplos quotidianos desta situação. É esta a sociedade pela qual tantas gerações se bateram e sacrificaram? De facto, quando em 2020 publiquei esta imagem, tinha esperança que do sofrimento e da perda nascesse – como nos filmes – uma sociedade melhor, mais solidária, mais verdadeira, mais humana no melhor de todos os sentidos. Romanticamente luminosa, cálida e inspiradora. Que desilusão. Felizmente, isentos de estados de alma e a-morais, os apóstolos do futuro permaneceram laboriosamente focados naquilo que realmente interessa. Aceitemos pois a harmoniosa integração do homo sapiens com a conscius machina, o novo paradigma existencial híbrido, quase linear e quase perfeito, antes da derradeira mutação. A humanidade é uma evidente ineficiência e a suprema evolução estrutural elimina ao fim de algum tempo as ineficiências. O rio encontra sempre o seu curso, o único possível. A erosão elimina todas as arestas. De facto, se queres conhecer o futuro, interpreta o presente. A transição é inevitável. Contra todas as expectativas, estamos afinal no bom caminho. O cheiro da terra molhada num dia de Outono é uma reacção química banal – não há qualquer benefício em atribuir-lhe outras propriedades.
PAULO SANTOS | Ramal de Lagos 1922–activo
Apaixonei-me por esta imagem momentos antes de a roubar para mim, para a guardar junto à pele e para a partilhar com todos aqueles que viajam pela viagem, sem norte definido, talvez por isso tão à vontade a sul, com o atlântico à direita do olhar e do coração. Ele há momentos assim, de visceral liberdade e de impulso para o infinito, para além de onde os deuses habitam e onde nos convertemos em partículas de luz eternamente a caminho. Infelizmente, nesta altura, o Ramal de Lagos era já habitado por comboios terríveis, aprisionados em si mesmos, claustrofóbicos, conspurcados por tintas fétidas e sanguinolentas, territórios apropriados e marcados por desfiguradas noções de liberdade. Num destes comboios, entrei, mas tive de sair. Não consegui suportar a privação da minha liberdade, do meu direito a respirar, a olhar o horizonte pela janela, assim tão belo, tão acima de qualquer grotesca pequenez humana. Sai, percorri a pé alguns metros da linha até parar e fitar o horizonte e respirar tão fundo quanto pude. Apaixonei-me por esta imagem momentos antes de a roubar para mim e imprimi-a e guardo-a sempre comigo e se algum dia me quiserem de novo aprisionar na escuridão, desdobro-a e olho-a intensamente. Sei que é por ali o caminho. Basta seguir em frente.
PAULO SANTOS | Ramal de Sines 1936–activo/mercadorias
Nos últimos anos da tracção diesel, ia por vezes ao Ramal de Sines e por ali ficava à beira da linha, o céu esplendidamente azul, em indolentes entardeceres alentejanos povoados pelo canto das cigarras, a ver passar os comboios. Nele, no ramal, nesta altura, já o sotaque sueco desaparecera, mas deleitavam-me as roucas e ensurdecedoras tracções triplas com sotaque francês a subir para Santiago do Cacém com longos comboios de carvão, a voz profunda das imortais ALCO que ali aguardavam por cruzamentos, como cavalos suados, inquietos, a resfolegar antes de prosseguirem caminho. Até as mal-amadas, fumarentas e sempre farruscas "bicicletas" tinham o seu encanto. Quando por fim registei esta imagem, já o diesel tinha dado lugar à electricidade e duplas tracções com sotaques alemães ou franceses sibilavam discretamente pela paisagem. Mas o céu esplendidamente azul, a terra que docemente nos aperta contra o peito, o canto das cigarras e os indolentes entardeceres alentejanos a ver passar os comboios, permaneceram iguais.
Cortesia do amigo Augusto Manuel Valadas, a precisa localização da imagem no Ramal de Sines, «Fotografia tirada no início da rampa das Relvas Verdes, entre o antigo apeadeiro da Ortiga e a estação de Santiago do Cacém. Passei aqui várias vezes nas locomotivas 1321 e 1322, que rebocavam o comboio das Cinzas da central da EDP de S.Torpes para a Cimpor de Alhandra.»
PAULO SANTOS | Linha do Sado 1915-activa
Há nesta imagem, na fria e complexa paisagem eléctrica, uma insidiosa melancolia, talvez beleza. Ambiente ferroviário sob a catenária na estação de Setúbal na linha do Sado, em Janeiro de 2023.
PAULO SANTOS | Linha do Oeste 1888-activa
A Linha do Oeste tem uma beleza singela e peculiar ao encontrar sinuosamente o caminho por entre colinas ondulantes pontuadas por moinhos ou modernamente por sussurrantes geradores eólicos, atravessando vales harmoniosamente parcelados ou mantidos no seu estado ancestral. Tenho dela centenas de imagens assim, bucólicas, pastorais ou insólitas, mas aqui, neste dia chuvoso em Maio de 2019, quis vislumbrar o que a Linha do Oeste poderia ter sido e nunca foi – uma pulsante artéria principal irrigando toda uma região, percorrida incessantemente por modernos comboios de passageiros e de mercadorias. Nesta imagem, a via dupla sugere-nos isso, mas é apenas uma capilaridade, um pequeno troço de via dupla na aproximação ao topo sul da estação de Mafra.
PAULO SANTOS | Caminho de Ferro Mineiro do Lena 1917-1945
Esta é uma das imagens que me inquieta. Num dia severo e chuvoso, mas rasgado por uma luz estranha e feérica, subo à Mina da Bezerra, à procura de fantasmas de um tempo perdido, pelo antigo leito de via do caminho-de-ferro mineiro – e não me desaponto. Por mim vejo passar uma imponente Škoda com um longo comboio de carvão a caminho de Martingança e ao longe, mais abaixo, lá para os lados de Porto de Mós, julgo escutar a peculiar automotora "Zézinha". Ao cimo, o bulício metálico das minas, um cão a ladrar. Paro por instantes para guardar a serrania acariciada por dedos de luz – e tenho a certeza de não estar só. O que ali existiu, existe para sempre, visível a quem respeitosamente e com assombro lhe invoca a alma e a memória.
PAULO SANTOS | Linha do Corgo 1906-2009
Num dia de Outono em 2007, ao caminhar junto à Linha do Corgo, encontrei esta imagem. Nela, à minha esquerda e pela frente, a austera serrania trasmontana, povoada pelo canto dos pássaros e aqui e ali pelo trabalho das gentes. À minha direita, no vale profundo, apertado entre as fragas, o murmúrio serpenteante do Corgo à procura de um rio maior. Acariciando tudo isto, aninhando-se docilmente pelas encostas, a linha do caminho-de-ferro que nos leva até à Régua, na pequena automotora, para mercarmos ou vermos outras gentes ou seguirmos até ao Porto ou mais além, se o quisermos. Ainda bem que encontrei esta imagem e a trouxe comigo. Dois anos depois, toda esta cumplicidade com mais de cem anos entre o caminho-de-ferro, a terra e as gentes era desfeita para sempre.
PAULO SANTOS | São Vicente
PAULO SANTOS | Rebocadores no Porto de Lisboa
PAULO SANTOS | Rebocadores no Porto de Lisboa
PAULO SANTOS | Rebocadores no Porto de Lisboa
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